sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Dois meses, com amor e esperança! Sentiram?

As grandes histórias merecem ser contadas pelo início. Pelo princípio de tudo, onde foi aí, no momento certo, em que tudo começou a fazer sentido…

Outubro de 2008:

Sem saber, a partir daí dava o passo, talvez um dos mais importantes da minha vida, mas também o menos consciente, que me fez saltar para esta aventura, para o lado de cá, onde tudo aconteceu, onde tudo se transformou.

Voluntariado, porquê? Não simplesmente porque sim, mas porque em mim havia uma vontade qualquer de experimentar qualquer coisa de diferente. Necessidade de mudança e de evasão. Acto inconsciente? Não! Hoje, depois do regresso e depois de tudo posso dizer aquilo que nunca tinha dito antes, nem a mim mesma. Acto corajoso, pois nem o desconhecido me fez tremer, me fez recuar por qualquer momento que fosse. Ficava apenas o medo, mas a vontade de querer continuar.

Eu fui corajosa, as pessoas que partiram comigo nesta aventura também o foram, e as pessoas que por lá encontrámos foram imprevisíveis, fugiram aos contornos, ultrapassaram os sentidos.

Março de 2009:

Recebia por mensagem a notícia que me fez tremer por dentro, que me arrancou um grito a pleno pulmões abertos: "FUI SELECCIONADA, CONSEGUI!! VOU PARA MOÇAMBIQUE!!"

Esta eufórica, feliz, sentia-me orgulhosa por ter conseguido passar em todas as etapas de selecção que me fez saltar para a conquista do sonho em vida. Mas nem naquele momento, com a verdade diante dos meus olhos me sentia preparada para aquilo que me esperava. O desconhecido continuava lá, as mesmas dúvidas. Ainda assim uma coisa começa a fazer cada vez mais sentido. Percebia aos poucos a razão da minha vontade: tinha um mundo à minha espera, ainda que desconhecesse, mas que sentia que de alguma forma precisava de mim e do meu trabalho. Sentia-me naquele momento preparada para dar o meu melhor, não sabia onde nem como e nem em que circunstâncias, mas a vontade, essa estava lá. Guardada no lugar certo, prestes a despontar, as minhas certezas estavam prestes a tremer…

Julho e Agosto de 2009:

Confesso-vos hoje que nas horas que antecediam o meu voo e a minha aventura por terras Africanas, a minha vontade em ir não era a suposta. Quer dizer, a vontade que vos falei acima, essa continuava lá, para sempre intocável, mas falo-vos aqui de outro tipo de vontade. Não estava nada preparada nem predisposta a deixar o meu conforto, a minha paz e estabilidade, que são para mim peças fundamentais e sem as quais não me imagino. Não estava preparada para abicar pela primeira vez das minhas férias e do meu descanso. Não estava sobretudo preparada para ficar sozinha comigo mesma, longe de todos aqueles que sempre tive por perto. Não estava preparada para o tal salto que sabia que ia inevitavelmente acontecer com esta viagem. Mas não fui contrariada, fui de livre vontade, porque a decisão desde o início tinha sido minha e só minha! Para o bem ou para o mal subi as escadas daquele avião com o coração apertado, mas com a certeza que eu seria eternamente a responsável por tudo o que acontecesse já daquele lado do mundo.



Três meses depois, aqui vos deixo a lista de tudo um pouco daquilo que aprendi, vi, experimentei e ensinei, naquela que é a África que não se prevê:

Na Escola Primária da Maxaquene-Khovo:

- Vi, logo no primeiro dia de apresentações na Escola Maxaquene-Khovo os sorrisos e a simplicidade que me tocaram desde o início e que me acompanharam todos os dias ao longo desta caminhada;

- Vi, no segundo dia na Escola Primária uma menina, que no fundo da sala chorava desesperadamente.

Aproximei-me e perguntei-lhe: "Porque é que choras? Caíste ou alguém te fez mal?"

A resposta foi inesperada: "Acho que perdi o meu lápis e agora não vou conseguir trabalhar." As minhas certezas tremeram...

- Encontrei crianças que estavam habituadas a serem os "meninos burros" do fundo da sala de aula;

- Descobri meninos donos de uma vontade e sede de aprender que nunca vi iguais;

- Descobri que a educação e generosidade não não têm preço, são transcendentes a raças e a classes sociais, podem existir, existem no coração e no modo daquelas crianças;

- Pediram-me para os ensinar a ler porque não sabiam;

- Chamaram-me pela primeira vez de "senhora professora";

- Nos intervalos ofereceram-me flores que me punham depois na cabeça;

- Chamaram-me de "minha princesa";

- Dei aulas de Educação Física e Educação Musical;

- Ensinei-lhes o hino Português;

- Aprendi com eles o hino Moçambicano;

- Arrancaram-me gargalhadas sinceras;

- Lanchei com eles durante os intervalos;

- Ensinei que aquilo que temos devemos partilhar;

- Levei-os a conhecer os meninos do Orfanato;

-Vi-os a partilhar o lanche com os meninos do Orfanato;

- Comprei o lanche a alunos meus que não tinham o que comer;

- Sequei-lhes as lágrimas e disse que "ia ficar tudo bem" de cada vez que se magoavam;

- Dancei e brinquei com eles;

- Ensinaram-me a dançar Marrabenta;

- Ofereceram-me desenhos, bolos e outras tantas guloseimas;

- Tirámos fotografias todos juntos;

- Chamaram-me de "meu general";

- Dei uma aula para uma turma de 25 meninos;

- Fui amiga e professora de 10 crianças fantásticas que me conquistaram;

- Pús uma turma inteira a dizer o alfabeto e fiz assim perceber aos meus 10 meninos que eles podiam ser iguais aos outros;

- Fiz cartolinas com as vogais, o alfabeto, as cores, os dias da semana e o corpo humano que deixei nas paredes daquela sala;

- Fiz-me ao caminho: ensinei as vogais, ensinei o alfabeto, ensinei pequenas palavras separadas por ditongos. Transformei essas palavras em pequenas frases. Ouvi-os pela primeira vez a ler;

- Tive que explicar que me ia embora e pediram-me para ficar. "Nós gostamos de trabalhar contigo senhora professora!"


"A senhora professora ensinou-me a ler, estou muito feliz!", Klevin, 25 de Agosto de 2009.

Terminei a minha missão. Cumpri o meu objectivo. Fiz deles a minha luta.

Consegui, conseguimos! Vou levá-los comigo, vou tentar ser a partir de agora mais igual a eles no modo e no jeito simples que me acompanharam durante dois meses, na mesma sala de aula onde fui pequena e criança como eles, onde fui muito feliz!



No Orfanato 1º de Maio:

- Conheci crianças selvagens, que num primeiro momento me agarraram de uma forma que nunca tinha experimentado e que assustaram;

- Conheci crianças pequenas, orfãs;

- Conheci crianças: umas que tinham sido violadas, outras que tinham sido abandonadas por estarem doentes, e ainda outras que foram abandonadas simplesmente porque sim;

- Percebi ali o verdadeiro significado do que é a injustiça;

- Ensinei-os a escrever o nome a tracejado;

- Pintei e desenhei com eles;

- Partilhei as suas revoltas e as suas histórias;

- Brinquei com eles e fui também eu uma criança igual a eles;

- Ensinei-lhes músicas;

- Mostrei-lhes o que era um telemóvel e eles vibraram;

- Mostrei-lhes o que era uma máquina fotográfica e eles vibraram outra vez;

- Fizémos um dvd com imagens deles e nossas e eles adoraram ver-se no ecrã;

- Apresentei-lhes os meus meninos da Escola Primária e eles brincaram uma tarde inteira;

- Dei a papa aos mais pequenos;

- Adormeci outros no meu colo.


"Sabes porque é que nunca me quis aproximar muito de vocês enquanto cá estiveram connosco? Porque sabia que mais tarde ou mais cedo teriam que ir embora, como vão todos os que aqui passam...", Florença, 28 de Agosto de 2009

Fizeram-me perguntas e mostraram-me um mundo para o qual não tinha resposta nem alternativa possível. Dei-lhes o melhor que tinha e aquilo que pude. Foram os principais responsáveis pela Joana que trago hoje comigo: menos egoísta, mais humana e leve.

Ensinaram-me aquilo que procurava: a respeitar a diferença.

Mostraram-me o mais ingrato e injusto que o mundo tem para oferecer: o abandono e a solidão.



O meu pequeno Yuran:

- Conheci um dos sorrisos mais perfeitos que alguma vez vi;

- Apaixonei-me por uns olhos enormes onde todos os sonhos e esperanças do mundo podiam caber lá dentro;

- Ouvi pela primeira vez uma criança naquele Orfanato a chamar o meu nome, numa voz estridente, mas doce: "XUANAAAA!";

- Ouvi muitas vezes ele ralhar com os outros quando não sabiam o meu nome e logo a seguir ele explicava-lhes que aquela ali que estava com ele chamava-se "Xuana”;

- Mudei-lhe as calças de cada vez que as senhoras do Orfanato o vestiam com um ou dos números acima do dele;

- Lavei-lhe a cara quando ele estava todo sujo ainda de comida;

- Dancei com ele e ele ensinou-me a dançar;

- Ensinei-lhe músicas e ele a mim;

- Pintámos e desenhámos juntos;

- Tive com ele o meu primeiro abraço sincero e aconchegante;

- Foi o primeiro que desejei levar comigo para casa;

- Adormeci-o ao meu colo;

- Calcei-lhe os mesmos sapatos vermelhos de sempre de cada vez que chegava ao Orfanato e lá estava ele descalço outra vez;

- Brinquei com ele tardes inteiras e voltei também eu a ser criança;

- Vi o processo dele e revoltei-me com o mundo;

- Andei de escorrega com ele;

- Limpei-lhe as lágrimas e prometia-lhe ao ouvido que tudo ia ficar bem outra vez;

- Dizia-lhe que ele podia confiar em mim de cada vez que tinha medo de descer a rampa com o tricicolo;

- Tirámos fotografias juntos e ele pedia-me logo a seguir: "Deixa-me ver!!";

- Perguntava sempre por mim aos outros de cada vez que não aparecia no Orfanato: "Onde está Xuana?";

- Acordei um dia ao telemóvel com ele do outro lado da linha a chamar: "XUANAAAA!!";

- Corria freneticamente para mim assim que aparecia no Orfanato;

- Uma semana depois de ter começado a ir ao Orfanato, deixou-me no portão e pediu-me para o levar para casa;

- No dia da despedida ele percebeu tão bem como eu que me ia embora, agarrou-se ao meu colo com força e pediu-me para não ir.


"Leva-me para a tua casa!, Yuran, 28 de Agosto de 2009

A nossa história acabou da mesma forma que começou. Mas hoje sei que tens uma casa, uma mãe coragem. Hoje percebi que talvez ainda haja alguma justiça no mundo.

O Yuran foi a minha verdadeira conquista e descoberta! Foi com ele que vivi a cumplicidade mais intensa e verdadeira.

Vou imaginá-lo para sempre, do outro lado do portão, naquele sítio que não gosto mas onde fui muito feliz a dizer: "Adeus Xuana, adeus!"



Numa casa desconhecida, numa África perdida no canto do mundo:

- Partilhei a vida, emoções, ansiedades e sorrisos com 14 pessoas diferentes, que me acompanharam, que estiveram sempre lá, cada um do seu jeito, cada um com o melhor que tinha para dar;

- Tomei vários banhos de água fria e enjooei tanto pão com manteiga;

- Provei comidas fantásticas que fizeram a balança disparar;

- Cantei sozinha, pela primeira vez, numa bar de karaoke, no nosso "Gil Vicente";

- Reencontrei um grande amigo em África que já não via há 1 ano;

- Sobrevivi um mês sem internet em casa, e no mês seguinte a frase mais repetida era: “Quem é que pode criar uma rede nova?” Ficou assim provado que a internet em casa cortava o ambiente de socialização.

- Era quase sempre a ultima pessoa a levantar-me da mesa e adorava de cada que me traziam o chá à sala;

- Viajei de chapa durante os fins-de-semana, por terras e estradas de fazer doer as costas, mas mesmo assim percebi que as piores viagens eram durante a semana, num chapa ainda mais apinhado de gente, embora em estrada melhor, mas dentro de uma verdadeira selva que era o trânsito;

- Conheci uma Luísa e uma Rebeca fantásticas, mulheres coragens, que todos os dias nos mimavam e nos facilitaram a vida e a convivência;

- Vi dormir por várias noites no chão, ao frio, os nossos guardas, o senhor Filipe e Gilberto, que mesmo com uma vida ingrata e feita de dificuldades, todos os dias nos sorriam com um sorriso feliz e amigo;

- Adorei as mesas cheias de gente ao jantar, e hoje também eu posso dizer que aquela era a hora mais feliz e barulhenta do dia;

- Reforcei amizades que já vinham de Portugal, e vi nascer outras sobre quatro paredes;

- Testei desde o primeiro momento que subi as escadas daquela casa as minhas capacidades e limites;

-Descobri assim uma capacidade de sobreviência e de tolerância que desconhecia em mim;

- Vi paisagens, vivi momentos irrepetíveis, que só ali, naquele lado do mundo acredito serem possíveis, numa África que mexe e abala sentimentos, numa África que se impõe no coração e na memória para sempre;

“Sabes, mais nada vai ser como dantes, já não somos mais as mesmas quando aqui chegámos há dois meses atrás”, Ana Vasconcelos, 31 de Agosto de 2009

Tens razão! Nenhum de nós é mais o mesmo que subiu há 3 meses através as escadas daquele avião que nos abriram as portas a Mozambique. Cada um, ainda que ao seu jeito, deixou por lá as suas sementes e os sorrisos que mesmo depois de tudo continuam a perguntar por nós.

“Os meninos do Orfanato perguntam por vocês, têm saudades vossas!", Mónica, 16 de Setembro de 2009

Toquei, tocámos o limite do mundo! Sentiram?

África, vou voltar!